Entre o leitor carente e a carência de leitores
Sobre o leitor ser a pessoa mais importante do mundo para quem escreve, mas calma aí, não vamos também exagerar...
Em sua ótima “Nota de repúdio ao leitor carente”, o escritor
critica a seguinte mensagem de uma leitora:Marcone cita Dercy Gonçalves num desaforo que talvez se justifique mas que eu não preciso justificar por que não vou reproduzir aqui. E rebate: “Se você precisa que o autor interaja com suas postagens pra continuar apreciando o trabalho dele, desculpe, você não é leitor: é um vampiro emocional, tiete frustrado de si próprio”.
Não sei exatamente por quê, mas essa interlocução me lembrou a história que certa vez ouvi de um colecionador de livros que, fã de um determinado escritor, chegou a uma sessão de autógrafos com sua obra envolta numa película plástica para colher a assinatura do ídolo. Quando o sujeito estendeu a mão para apanhar o livro, ouviu o estranho pedido: “Só eu posso abrir meus livros”, disse o colecionador, tirando o volume da sacola e buscando a folha de rosto com todo o cuidado do mundo. “O senhor podia fazer o favor de assiná-lo com ele nas minhas mãos?”
Talvez a lembrança me ocorra porque, nesse último caso, o colecionador pareça gostar mais dos livros que dos seus autores, chegando ao cúmulo de correr o risco de ofendê-los para manter a integridade do seu objeto de idolatria. É como aquele fã que, deliberadamente, não deseja conhecer o ídolo porque o autor sempre costuma ser pior que a obra, então melhor deixá-lo intacto na redoma de vidro que construímos em torno dele, sob o risco de vê-lo descer do pedestal e começar a se desmanchar como uma estátua de areia.
No que concerne a mim, como escritor, sempre achei fascinante a ideia de que, depois de dias, meses, talvez anos trabalhando em um livro, aquilo que escrevi pudesse ter o potencial de, entre todas as distrações do mundo, manter alguém concentrado por algumas horas desfrutando dos prazeres e das angústias que eu também desfrutei ao fazer de uma página em branco uma página escrita, e do acúmulo de algumas delas uma história capaz de ser transportada para a cabeça de alguém.
Lembro-me de uma festa literária em que eu estava na plateia e um colega escritor falou mais ou menos o seguinte: “Como autor, eu sei que vocês vão ler o que eu escrevo e dizer o que gostaram e o que não gostaram; eu sei que vão sair resenhas na imprensa elogiando ou criticando o que eu escrevo…”. Ele seguia tentando argumentar que sua missão como escritor era quebrar essa expectativa, mas juro que não consegui mais me conectar com aquela realidade porque, como escritor, nunca senti que contasse de antemão com o privilégio de saber que alguém vai ler o que eu escrevo ou que vão sair resenhas na imprensa. Depois de finda a batalha de terminar o livro, não estava terminada ainda a guerra: havia ainda a imensa batalha por vê-lo publicado, e depois uma outra batalha ainda maior que era fazer com que ele encontrasse seus leitores.
Aprendi a considerar o leitor o elo mais importante dessa cadeia, e a saber que ele não ia estar ali para sempre. Esta semana, por exemplo, voltou por alguma razão às manchetes o dado de que João Pessoa era a capital com mais leitores do Brasil (64%, à frente de outras capitais como Curitiba, Manaus, Belém e São Paulo). Uma estatística de 2019, do mesmo Instituto Pró-Livro que, em sua última edição, no ano passado, demonstrou que o número de pessoas que não leem já é maior que o número de pessoas que leem (53% frente a 47%), e que, no Nordeste, a porcentagem de leitores caiu de 48% para 43%.
Fora do livro, aprendi a acolher os leitores sempre que tive oportunidade. Isso justifica a carência do leitor? Não. Talvez a do escritor, expressa em alguns versos do poeta Alberto Cunha Melo que ontem mesmo um amigo me lembrava:
escrevemos cada vez mais para um mundo cada vez menos, para esse público de ermos composto apenas de nós mesmos, uns joões batistas a pregar para as dobras de suas túnicas seu deserto particular, ou cães latindo noite e dia dentro de uma casa vazia.
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bah fiquei choquita com o fato da pessoa ficar indignada em não ter seus posts hitados pela escritora. gosto sempre de pensar: se fosse um escriTOR, isso seria um problema? acho que, tem vezes, o público se deita demais nas escritoras mulheres achando que tudo a gente deve receber com toda gratidão como se fosse um favor nos ler. daí complica.
Admirar e usar alguém como referência faz parte. Não há nada de mal ter ídolo em diferentes áreas. Mas a mente da gente precisa estar preparada para a qualquer momento separar o CPF do CNPJ