Não fui à bienal este ano, e conto como foi
Ou pelo menos conto como foi a edição em que eu fui, em 2006
Eu tinha vinte e quatro anos quando fui à minha primeira bienal em São Paulo. Já sonhava em ser escritor e tinha uma coluna num jornal que publicava minhas crônicas semanalmente, mas isso na minha cabeça me tornava um jornalista, não um escritor. Alguém na época já tinha me dito o que continuariam a dizer mesmo depois da indicação ao Jabuti em 2018, por um livro de crônicas: isso não vai te levar a lugar algum, a crônica não vende, nenhum cronista no Brasil é respeitado além do Rubem Braga.
E calhou que foi o Rubem Braga quem ganhou o Jabuti naquele ano, mas tudo isso é futuro, estamos falando do passado e acompanhando a saga de um jovem aspirante a escritor que tinha se mudado pra Campinas recentemente e guardava no bolso, como um amuleto, sua única referência de São Paulo: o telefone de outro nordestino, este sim um escritor já famoso. Tinha sido meu primeiro sucesso literário. Ter conseguido o telefone do Marcelino Freire e feito ele concordar em me receber depois de sua mesa, naquela bienal. Marcelino tinha publicado Contos negreiros, seu Jabuti naquele ano, e foi generoso o suficiente para acolher um fã desconhecido, com quem tinha trocado apenas meia dúzia de e-mails.
Eu já tinha experimentado o impacto de cruzar a Marginal Tietê na infância, mas nada tinha me precavido para a visão do pavilhão do Anhembi repleto de livros, de leitores e escritores ou aspirantes a escritores como eu. Aquela será para sempre minha primeira impressão de São Paulo: um lugar apinhado de livros e de leitores ou aspirantes a alguma coisa. Eu queria viver entre eles. Eu tinha que me mudar pra lá. Acho que foi o momento em que comecei a abandonar o mestrado em literatura que eu estava fazendo em Campinas. Eu achava que a pós-graduação ia me tornar um professor de literatura, não um escritor. O jornalismo já tinha me enganado uma vez. Eu não ia cair nessa de novo.
Marcelino foi o cara simpático que ele é, me tratando como um igual. Mas a minha sensação era a de andar pelos estandes com um parente abastado, mostrando ao recém-chegado a megalópole de papel. Eu não sei se eu estava mais deslumbrado com a companhia dele, sua gentileza tamanha, ou com todo o resto à minha volta. Na saída, ele me deu carona no seu táxi até uma estação do metrô. Eu ficaria hospedado na casa de um primo e no outro dia, talvez, marcaríamos alguma coisa na Mercearia São Pedro. Eu tinha uma namorada paulista na época, e redigi uma mensagem me gabando um pouco de ter um escritor famoso que era meu amigo e me considerava a ponto de talvez marcar alguma coisa comigo no outro dia. A mensagem, por acidente, foi enviada para o próprio Marcelino. Eu procurei um buraco para me esconder e permaneci nesse buraco por mais de dez anos.
Eu não podia mais olhar pra cara de Marcelino Freire.
Com o tempo, a vergonha se misturou ao fracasso. Era um raciocínio meio neurótico, mas eu era neurótico, e achava que o meu constrangimento só iria passar se algum dia eu pudesse encontrar o Marcelino e entregar nas mãos dele um livro escrito por mim. Quando finalmente eu escrevi esse livro, o fracasso se misturou ao orgulho ferido: eu tinha um livro de crônicas e ainda não me considerava um escritor. Eu jamais estaria à altura de Marcelino, agora um romancista premiado.
Depois de dois romances, um livro de contos e outro de crônicas (e mais um prestes a ser lançado), eu achava que ainda não estava à altura dele, mas já tinha passado da hora de superar esse trauma. Mandei uma mensagem pro Marcelino. Eu não tinha mais o telefone dele, mas ainda tinha seu contato nas redes sociais. Eu não sabia se ele se lembrava que eu era aquela jovem acabrunhado que um dia tentou impressionar a namorada com uma mensagem sobre ele e por décadas tentou reparar esse erro, tentando na verdade impressioná-lo. Para minha surpresa Marcelino respondeu, com a simpatia de sempre, mas meu lançamento em São Paulo o alcançava no Rio, depois de uma Flip.
A crônica me fazia voltar a São Paulo, mas não me levaria a bienal alguma além daquela de 2006, quando eu talvez já fosse o escritor que sou hoje e julgava que só alguém como o Marcelino pudesse enxergar isso.
E o que deu dessa última mensagem? Queremos o desfecho!!!
Tiago, eu sou fã do Marcelino, meu livro nasceu, bem dizer, numa oficina com ele. Tive a sorte de encontrá-lo em Recife e entregar um exemplar. Ele que pediu pra fazermos um foto, acredita? Eu tive vergonha e ele generoso como é, fez isso por mim. Eu tô rindo alto da tua msg errada e muito certeira hahaha.
Posso dizer aqui, publicamente, que tenho me tornando sua fã também. Seja pela Flirede, pelo seu romance ou crônicas. Se eu me gabar com alguém e a msg for pra vc, por favor, me entenda hahahahaha