Segundo o senso comum, a cada ano que passa, envelheço um e você, sete. É uma matemática injusta, porque pra mim você é só uma criança que acabou de fazer doze anos, e eu que sou o velho rabugento de oitenta e quatro, apavorado, sem saber como lidar com essa nova fase de sua vida. Justiça seja feita, você está muito bem para a sua idade: somente alguns fios brancos na barba, um olhar leitoso já anunciando uma catarata, e seus dentes que andam um tanto moles — pelo menos foi o que nos disseram da última vez no consultório.
Você tem envelhecido com dignidade, meu caro. Outros já estariam enfiados em fraldas, mas você, fora a última vez que comeu o que não devia e deixou todos lá em casa em estado de alerta, continua com a saúde de ferro, o apetite de sempre e essas manias tão suas, que você nunca perdeu. Verdade seja dita, a gente sempre tentou ir contra a sua natureza. Mas você sempre fez o que bem entendeu: sujando tudo e bagunçando toda a casa. Nem sempre foi assim, mas hoje nós já aceitamos. Entendemos, a duras penas, que isso é um sinal de que você ainda está conosco. Descobrimos, depois de tanto tempo, que é isso o que te faz uma criatura única, fascinante, que não saberíamos amar de outro jeito.
Você é o meu melhor amigo. O amigo que não tive na infância e que tive a sorte de encontrar na idade adulta. Desde então tem sido não só minha melhor companhia, mas meu melhor comprovador: você tem a idade do meu casamento; estava lá desde sempre, do primeiro dia dos namorados ao desastrado pedido de noivado. Em tudo de relevante que aconteceu em nossas vidas desde então. Cruzou o país num avião conosco, enfrentou um furacão extratropical conosco. Dividiu alegrias e tristezas, compartilhou perdas e conquistas, contemplou risos e dores.
A ideia de perder um de vocês me é insuportável. Tem sido difícil fingir uma dureza que não tenho e não demonstrar algum temor. Há lembranças que só tenho na presença de vocês, e é disso que falo quando digo que você me ajuda a comprovar. Sem você seríamos apenas eu e ela, e um grande sentimento que poderia nos fazer duvidar. Você não nos deixa duvidar. Fora a literatura, é o nosso elo mais importante. Sabemos muito pouco do que somos longe de você.
O engraçado é que você sempre foi meio brabo, nunca se mostrou muito dado a afagos e carinhos. Nunca gostou do braço, só vai pra ele amarrado, porque nunca aprendeu a subir ou descer as escadas. Também nunca foi de muitos amigos, nem da sua nem da nossa espécie. Os nossos, tiveram que se acostumar a você. Gostar de você ao seu modo, sempre foi o trato mais justo.
Você nos machucou algumas vezes, mas sei que também te machucamos, principalmente com nossas ausências. Céus, como parecem décadas as horas que ficamos fora e quão enorme sempre é a sua festa, quando enfim voltamos a nos encontrar. Minto. Você é carinhoso pra caramba! Como é divertido ver você se contorcendo de felicidade, recebendo a gente na porta, correndo de um lado pro outro, anunciando a nossa chegada... O tempo deve correr mesmo mais veloz pra você, meu amigo. Perdão por não estar por perto sempre, como você faz questão de estar.
Você tem os seus pequenos rituais e há uma ternura neles que só a gente reconhece. Agora, por exemplo, você virou pai. Um pai tardio, como eu. Adotou um bichinho de pelúcia, o Ravi, e todas as tardes o leva pra baixo da rede, na varanda. Quando volta pra casa o traz de volta desse breve passeio, todos os dias, religiosamente. É bonito ver você carregando ele assim, de um lado pro outro, mais ou menos como a gente faz com você. “É o bicho do bicho”, a gente ri, cheio de orgulho, vendo você cuidando de alguém além de nós, com essa dedicação tão grande, esse afeto tão imenso, essa entrega tão plena. O tempo te amoleceu, não foi, meu amigo?
Ontem estendemos o colchão na sala e te deixamos, enfim, subir nele. Lembra o quanto você era territorialista e a gente costumava evitar esse tipo de coisa? Pois é. Mas tudo bem, a essa altura você merece que a gente te conceda esse capricho. Estamos nos compensando. Ela logo dormiu e você se aninhou entre nós, mais ou menos como a gente te achou da primeira vez, no meio de uma outra ninhada. Você cochilou e fiquei sentindo sua respiração, sem me mexer, como medo de te acordar. Parei de assistir à tevê pra ver vocês dois dormindo. Me senti mais forte. Me senti mais frágil. Morei ali. Fiz de vocês minha família. Quis que isso durasse pra sempre. Amei e aproveitei cada momento.
Pareceu que se passaram anos.
Não sei se sabem, mas estou testando as crônicas que publico aqui em formato de vídeo no meu Instagram. Sigam-me por lá também. Eis uma amostrinha dessa crônica, aqui:
césar parece um cara muito legal!
Caramba, me emocionei muito com esse. Te digo, com 100% de certeza, que entendo o sentimento e as minúcias do que tá dito ali.